Estão – estamos – de volta

agenda

A cada palavra que escrevo, volto para refazer algumas letras específicas. Estico a perna do p, refaço a barriguinha do f que não ficou muito boa. Isso me toma tempo e sempre liga uma sirene bem baixinha na minha cabeça me lembrando de que tudo o que não preciso nessa vida é desenvolver um hábito compulsivo. O fato é que sempre volto e reescrevo algumas letras.

Não sei o que a psicologia ou alguma ciência que explique a caligrafia têm para falar sobre isso, mas penso que tenho o direito de desenvolver minha própria teoria. Longe de ser perfeccionista, isso eu não sou. Sou mais dedicada em algumas coisas, em alguns momentos, mas consigo viver bem com um serviço mal feito.

Voltar e reescrever as letras, na minha teoria, é uma tentativa de acertar. Acertar as arestas, acertar os ponteiros, acertar os números da loteria. Eu não consigo passar para a próxima palavra sem consertar as letras anteriores assim como não consigo dar passos para frente sem resolver as letras mal escritas do passado. Aquilo fica me incomodando até que eu volto lá e reescrevo para acabar logo com isso. Para poder seguir em frente. Próxima palavra, próxima frase e finalmente próxima página.

Tenho escrito demais nos últimos meses. Teorias dos outros, nenhuma teoria minha. Eu tenho uma porção de hipóteses e poucos caminhos nesse momento. Fiquei anos sem escrever essas linhas que liberam as palavras engasgadas. Não conseguia, elas não saíam. Foi preciso um solavanco muito forte, absurdamente forte. Agora elas estão saindo.

Sejam bem-vindas ao mundo, minhas palavras.

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A responsabilidade do carinho

Minha mãe nunca me deu chance. Nesses 24 anos de convivência foram poucas, bem poucas as vezes em que tive que me preocupar com ela. Minha mãe se preocupa com tudo e todos, inclusive com ela mesma. Toma conta dos problemas dos porteiros, dos planos de viagem da vizinha, da doença da fulana-amiga da ciclana-vizinha da beltrana que mora na mesma cidade que a irmã.

 

Foi baseada nesse histórico que mais uma vez me assustei ao vê-la vulnerável. Cuidar de mãe é uma tarefa para a qual estou me preparando com o tempo. Não acho que ela precisará de mim tão cedo – você não acreditaria na agilidade e força dessa avó de três netos – mas a vida acaba trazendo essas necessidades vez ou outra. O repouso após uma cirurgia, uma virose forte, essas coisas que derrubam até leão. Que derrubam inclusive a minha mãe.

 

Cuidar dela durante a tarde de hoje foi um dos sinais mais fortes de maturidade que senti desde que essa tal maturidade resolveu se instalar na minha vida – sem minha permissão, confesso. Cozinhar, ir ao banco, pagar as próprias contas, lavar o banheiro, trocar o pneu do carro, são meras trivialidades perto da responsabilidade que é cuidar de quem sempre cuidou de você.

 

Ao vesti-la, colocá-la no carro, acomodá-la cuidadosamente em casa, me preocupar com a alimentação e todo o resto, eu não estava procurando retribuir as vezes em que ela levanta de madrugada para ver se a febre passou nem quando ela liga pra me avisar que tem comida pronta na geladeira e nem tudo o que ela faz para realizar meus sonhos mais banais.

 

Só quero mostrar que ela soube ensinar e por isso eu aprendi: o carinho é companheiro da preocupação.

 

* Texto escrito em 2011.

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Do chão não passa

E se eu cair? Se cair, do chão não passa.

Numa versão mequetrefe do Jogo do Contente, instituiu-se um novo jogo. Nos momentos de tensão quando se sabe que vai dar merda ou nos momentos em que se está tranquilo e de repente jogam tudo no ventilador, tenho recorrido ao raciocínio simples: Qual a pior coisa que pode acontecer?

Coisas ruins podem acontecer, inúmeras delas. Mas só uma é a pior de todas, o temor dos temores, a consequência final. O carimbo na carteira dando adeus a uma jornada, a batida de uma porta, gritos, olhares tortos, uma dívida não-planejada. Um susto, um tapa, uma marca.

A pior coisa pode ser uma coisa realmente ruim, pode trazer angústia aos dias seguintes, talvez até por meses. Mas se não representar nada na sua linha da vida, no barbante desenrolado desde o início da sua caminhada solo, deixa pra lá. Se for possível antecipar que essa tristeza será passageira, deixa pra lá.  Do chão não passa, prometo.

Degrau tá aí pra isso, pra gente subir de um em um, depois de dois em dois, aí querer inventar de subir de salto, correndo, de lado, de costas, e vem uma torcida de pé pra colocar tudo a perder.

Qual a pior coisa que pode acontecer? Um roxo, aquela ressaca moral quando se lembra do tombo, alguns degraus e quem sabe até um lance de escada desperdiçado, cai-se um andar inteiro, mas é isso, o pior é isso. Do chão não passa.

Tira a poeira da calça, coloca o topete no lugar e volta a subir. Ou fica parado nesse andar mesmo, ninguém está mandando você chegar lá em cima, até porque eu não posso garantir que a cobertura é tudo isso que dizem.

Se o pior for passageiro, deixa pra lá. Ok, cria umas rugas de preocupação aí nessa pele bonita, mas não perde noites de sono pelo o que é transitório. Na hora do desespero, com merda espalhada por todo canto, coloca a cabeça no lugar e raciocina: o pior que pode acontecer é isso? Então foda-se, amigo, foda-se.

Isso aqui são só uns degrauzinhos, estou passando no seu andar, mas você não está vendo dois pés fincados aqui. Está?

Se o pior que pode acontecer for irreversível, um desastre para a sua caminhada, se for cortar o seu barbante desenrolado, está liberado o desespero. Aí não tem jogo que salve. Mas se não for, deixa pra lá. É só um nó e são tantos andares.

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A vida engolida

Adoro rotina, não se engane. Adoro planejar o dia seguinte, listar na agenda as obrigações e ir marcando ok ao longo do dia. Não é a coisa mais trágica da vida se por acaso algo fugir da rota, se não conseguir realizar todas as tarefas pensadas. Acontece! Mas ter um roteiro minimamente definido me dá segurança e me ajuda a me organizar nessa loucura que é vida de jornalista – ou praticamente qualquer outra vida, imagino.

Aí vem segunda, terça, quarta, cada dia tem uma cara porque cada dia tem uma lista de obrigações. Dá 18h, pega o carro, atravessa a cidade e não acabou a obrigação. O mundo inventa uma série de outros afazeres nas poucas horas que sobram pra gente aproveitar a vida.

A rotina engole a vida e a gente nem vê. Adoro rotina, mas rotina, como é de praxe, cansa também. De repente a gente não faz mais nada a não ser o que é obrigação.

E é minha obrigação escrever, todos os dias, sobre os mais variados assuntos, textos longos ou de 140 caracteres: escrevo. Essa é a melhor parte da minha profissão. Mas aí vem a rotina, o registro profissional engole a pessoa física e voltar a escrever sem pretensão parece dieta. Toda semana estou prometendo uma volta.

Preciso destravar esses dedos!

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mim.

Em tempos de seca, distribuo senhas para quem quiser ler. Não entrego chaves, entrego dicas. O mapa está na mesa de entrada, sirvam-se quem quiser.

É febre, sinal de que algo está fora do lugar.
Esse chão rachado, pronto pra se partir ao meio e dividir o planeta em duas partes.

Eu fico aqui nessa situação desconcertante, com as pernas abertas, um pé em cada mundo prestes a se formar. Não sei onde me encaixo agora que me roubaram.

Foi embora o lápis, a caneta, o teclado, me abriram a cabeça e tiraram um pedacinho de massa. Foram embora as palavras.

É como febre, deve ser um sinal de que algo está fora do lugar.

A gente estranha quando falta o apetite, falta o sono, falta o ânimo, falta a cor rosada das bochechas. Realmente algo deve estar errado, pois faltam palavras. Um hemograma completo, urgente.

Mas eu espero – eu realmente espero – que elas estejam todas escondidas num cantinho, ali perto da nuca, onde elas sabem que eu nunca vou procurar.

Que elas estejam lá, todas juntinhas, bem apertadinhas, vigiando o barulho do meu salto, para, com o mínimo movimento da fechadura, pularem todas, agitadas, felizes, muito vivas.

E que voltem a fazer parte de mim.

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